O valor da aposentadoria era insuficiente.
Sem alternativa, o velho descolou trabalho em afamado cursinho, que ofertava dicas e macetes para encarar as pegadinhas do vestibular, e ensinava. Devia o emprego a gentis-homens, que não pouparam influência e prestígio, para amparar o ex-professor. A administração se rendeu, dispensando a condescendência do velho em ornar a discreta gravata, com o bem bolado logotipo da escola.
A saudade do Plano de Aula elaborado com esmero não impedia o mestre de admirar as novíssimas técnicas, imperativas face às transformações do mundo no fim do milênio. Aceitava como fato inexorável, deixar de ser professor, para tornar-se um autômato.
As aulas eram pacotes remetidos pela coordenação geral, que ele evitava chamar “kit”, como se fosse um palavrão. Seu trabalho era distribuir o material e ler fielmente a orientação aos alunos. As dúvidas vinham classificadas, estatisticamente, em certas, freqüentes, eventuais, raras e jamais. Para estas, inclusive, haviam respostas previamente elaboradas.
Ao receber o pacote, antes da aula, o professor se inteirava das certas, pois sabia que “eles” não erravam – os alunos fariam as perguntas previstas nesse tópico.
Sentiu-se em casa com o material da aula daquele dia: textos de Machado de Assis e Lima Barreto. Achava-os mais próximos do que o mundo que o cercava. Estranhou o exercício recomendado, mas sua função era transmitir, não estranhar. O desconforto aumentou quando viu branco o espaço referente às dúvidas certas, sinal de que os alunos não teriam dúvidas - “eles” nunca erravam!
Cópias dos textos “Um Apólogo” * e “Quase ela deu o “Sim”, mas...” ** foram distribuídas aos alunos. O professor leu mecanicamente, sem substituir “vocês” por “senhores e senhoras”, conforme habitualmente se permitia: “Os textos devem ser comparados e as semelhanças identificadas. Todo o processo será descrito na folha em branco que acompanha os textos, em forma de redação, inclusive com título. Este trabalho deverá ser apresentado na próxima aula. Para constatar a facilidade da tarefa, façam uma leitura silenciosa do material”.
Ao término da silenciosa leitura barulhenta, um rapaz cuja voz ninguém conhecia e, dizia-se, não era a primeira vez que fazia vestibular para o curso de Direito, tinha uma dúvida. Intimamente o professor regozijou-se – “eles” também erravam!
O menino não havia encontrado semelhança entre os textos na primeira leitura. Um murmúrio conclusivo percorreu a sala: “É por isso que não passa no vestibular”!
A ausência de solução pré-estabelecida transferiu ao professor a tarefa:
– Encontrando ou não semelhança, o senhor deverá interpretar os dois textos e fundamentar a conclusão.
Na aula seguinte, a ordem falhou e palavras soltas no meio do vozerio diziam o que se esperava: “aproveitador”, “exploração”, “trabalho alheio”, “oportunista”, “classe dominante”, “proletariado”, “parasita”... A confusão estava terminando quando o menino-que-não-passava-em-vestibular leu o título da sua redação: “Similaridade Aparente”.
Arriscando-se a perder o emprego, o professor pediu que fosse lida a única interpretação divergente da sala.
Tímido, ele obedeceu.
A análise do apólogo de Machado de Assis, que contém parâmetros mais nítidos para comparação, deveria anteceder à de Lima Barreto, porém, é justamente ele que, desfazendo a similaridade aparente, orienta a conclusão do presente trabalho. Tendo de escolher entre premissas embaralhadas e clareza da conclusão, esta foi privilegiada. O trabalho terá início com a interpretação do texto de Lima Barreto.
O Autor conta a história de João Cazu, rapaz acomodado, que vivia às expensas dos tios, “filando” cigarro dos amigos e jogando futebol. Tinha a única ambição de manter-se na condição de “parasita” e, logo encontrou um meio: casar-se com mulher rica.
Passando, certo dia, pela casa da viúva Dona Ermelinda, esta lhe pediu um favor que foi prontamente atendido. Após analisar a capacidade financeira da viúva, Cazu a elegeu como vítima.
A falta de caráter da personagem – Cazu -, exibida de forma genial pelo Autor, dispensa comentários.
O texto se enriquece na medida em que desmente preconceitos relacionados à condição feminina, agravada pela viuvez e dois filhos para criar, conhecidos como fragilidade, vulnerabilidade e insegurança, mostrando a energia de Dona Ermelinda, mulher dinâmica, que sustentava a si e dois filhos, trabalhando e ganhando o suficiente para completar a modesta pensão (montepio).
Contra os costumes de hoje e de então, o falecido marido havia comprado a casa em nome dela “por precaução”, o que a fortalece em relação ao cônjuge masculino. Apesar da simplicidade, a personagem salvou a casa das “garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados”, pediu a “intervenção do compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos ‘águias’ começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel” e “abocanhá-lo”.
Em síntese, o autor mostra demoradamente as vitórias de Dona Ermelinda em todos os confrontos com homens aos quais foi submetida, criando certo suspense: Seria o imprestável Cazu, o homem que levaria vantagem sobre a viúva?
O desfecho é interessante porque a viúva arquitetou uma forma de esquivar-se da desagradável resposta – não – e sequer cogitou confrontar seus encantos com suas posses.
Se a interpretação acima não apresenta dificuldades, o mesmo não ocorre com o enigmático “Apólogo” de Machado de Assis.
De início, é conveniente confirmar o significado da palavra-título – Apólogo: “uma historieta mais ou menos longa, que ilustra uma lição de sabedoria e cuja moralidade é expressa como conclusão” (Aurélio).
A trama se desenvolve por meio de curioso diálogo entre a agulha revoltada e a linha vaidosa, ambas querendo superar-se em importância no ato de coser. A certa altura, a linha acusa a agulha de não ter cabeça e o leitor não pode deixar de pensar que, afinal, nenhuma tem - daí a estéril discussão. É evidente que uma depende da outra; que unidas são importantes, enquanto separadas perdem a própria essência e razão de ser.
Entrementes, alguém com cabeça, porém de alfinete, vangloria-se por não abrir caminho a ninguém, quedando-se inerte onde é espetado.
A discórdia aponta para solução enobrecedora do trabalho em colaboração e a censura de mesquinharias egoístas e vaidades pessoais, ao estilo argamassa e tijolo, que juntos podem se tornar grandes, belas e úteis construções.
Mas, o autor surpreende com a introdução de nova personagem e seu extravagante ofício - professor de melancolia -, a quem transfere a tarefa de concluir a história: - “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária”.
As perguntas surgem naturalmente: Por que “professor de melancolia”? Por que não um “professor de filosofia” especializado em questões morais?
Não cabe ao intérprete responder. Pode, sim, apreciar a originalidade da construção literária.
Os limites da interpretação encontram-se no texto. É proibido ampliar, especulando a intenção do autor; assim como reduzir, ignorando palavras supostamente supérfluas. O texto não contém palavras vãs.
Machado de Assis exibe a falsa conclusão sem se comprometer, já que evidencia o vício de modo ostensivo, para que não passe despercebido. Quem já ouviu falar em professor de melancolia?
A peculiaridade subjetiva do mestre em estado mórbido de tristeza e depressão invalida a dedução moral explícita.
Para ser efetivo, o valor moral deve ser encontrado no senso comum do homem mediano: não otimista, nem pessimista; não eufórico, nem depressivo.
Não sendo o caso da excêntrica personagem, o Apólogo ensina como não inferir a moral da história.
Terminada a leitura, o grandão esparramado na cadeira levantou-se rosnando um elogio com meias palavras e inteiros palavrões. Ia continuar, mas o professor interrompeu. Depois da conversa em voz baixa, retornou aos colegas:
- Eu ia dizer que... Ia dizer que se eu fosse Machado de Assis... – olhou para o professor com cara de um-palavrãozinho-só? O professor olhou para ele com cara de nem-pensar! Diante da classe impaciente, falou depressa:
- Se eu fosse Machado de Assis, usaria o apólogo para alfinetar meus desafetos.
A vaia o encorajou:
- Ele era gênio, mas humano como eu!
Da estudiosa no fundo da sala, se ouviu:
- Professor, será que Machado de Assis se submeteria ao papel de agulha, para conduzir um fio tão valioso como Lima Barreto, entre tramas da Academia Brasileira de Letras?
O professor não respondeu porque a aula terminou.
Na sala vazia, enquanto anotava o lembrete ao menino-que-não-passava – “Sem conclusão expressa (similaridade) a redação perde pontos em vestibular”-, o professor pensava nos ex-alunos: “fios de pura seda... Se tornaram agulhas para abrir buracos a esta velha linha cheia de nós”.
* “Para Gostar de Ler, Volume 9 – Contos”, Editora Ática, São Paulo, 1984, p. 59.
** http://releituras.com/lima barreto_quase.asp
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Vou formatar não... tô com preguiça...
Cris
uma dica, solicite o vãgão “E” pois você irá tirar fotos lindas nas curvas, tanto da máquina quanto do último vagão. BOA VIAGEM. Estrada de Ferro Vitória a Minas A Estrada de Ferro Vitória a Minas é uma ferrovia brasileira que liga a cidade de Belo Horizonte , capital do estado de Minas Gerais (passando pela região de mineração de Itabira ) à Cariacica , na Região Metropolitana de Vitória , e aos portos de Tubarão , Praia Mole, e Barra do Riacho, no Espírito Santo . É uma ferrovia de bitola métrica (1.000 mm).
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