Madrugada. Depois de uma bela farra no Taberna - um botequim delicioso que havia em Guarulhos na década de 80 - dei carona para uma amiga que morava em Cumbica. No caminho de volta um camburão da polícia militar parado na outra mão da avenida chamou minha atenção. Estava com as portas abertas e fora dele quatro ou cinco policiais na calçada riam muito. A cena se fechava mais adiante com dois moleques que corriam assustados e às vezes olhavam para trás.
É claro que reduzi o carro. Quando vejo um carro da polícia, sei lá... eu geralmente reduzo. Além disso a cena era tão curiosa... Passei pelo camburão falando entre os dentes para o meu carona, Mateus - um uruguaio em situação irregular no Brasil - anotar a placa da viatura. Sabia pelo cenário que ali havia merda. Francamente, hoje fico pensando que merda eu devia ter mesmo era na cabeça. Que é que eu pensava que estava fazendo? Tinha a dimensão do perigo mas não o medo que tenho hoje.
Alcancei os meninos e de dentro do carro perguntei o que estava acontecendo. Estavam pálidos e assustados. Pareciam passageiros recém desembarcados de um trem fantasma. Apanharam dos policiais a noite toda. Um mais do que o outro. Este estava ali de gaiato. Era um primo, já arrependido de vir do Maranhão tentar a vida aqui em São Paulo, disse-me. Só tomou uns tapas e socos na cabeça. O outro levantava a camisa e exibia as marcas dos cacetetes pelo corpo e numa cantilena explicava como e onde sobre os choques-elétricos.
Eu estava no meio de uma desova. Explico. Desova, entre outras acepções, é o nome que se dá à finalização de uma sessão de tortura encomendada à polícia. Trata-se do momento em que a polícia regurgita às ruas o elemento que ela seqüestrou, no caso em questão, ainda vivo, apenas para dar um corretivo.
Sequestraram os moleques no fim da tarde e ficaram com eles umas doze horas, calculei. Ao meu lado, Mateus, o uruguaio - um homão enorme que fazia sexo comigo tão desafinadamente quanto apitava seu saxofone - implorava para que eu saísse dali. Insisti aos meninos que subissem no carro e fôssemos a minha casa. Não os convenci. Trocamos endereços. Enquanto isso, pelo retrovisor do carro, notei que, numa outra viatura, policiais observavam a conversa. Quando os meninos se foram, a viatura acelerou, me ultrapassou e parou mais adiante numa ponte perto de casa. Dois policiais desceram e abordaram os meninos.
O Brasil é um país muito chato de se viver, se você pensa, não tem dinheiro e tem medo. Acelerei o carro e estacionei a brasília velha de meu pai atrás da viatura. Presenti que iam matar os guris. Quis descer do carro. A droga da porta não abria. Mandei meu passageiro, que estrebuchava de pânico, calar a boca. Um dos policiais encostou do meu lado e perguntou: “Algum problema aí dona?” Já era para os caras terem me apagado. Tenho a língua maior que a boca. Disse :“Eu não. Mas vocês têm um problema, sim. Tenho o endereço dos meninos. Vão matar os quatro, ou amanhã conversamos sobre o assunto?” O outro policial aproximou-se e me reconheceu. “Pô Cris, você não sabe? Esses caras vão roubar seu toca-fitas, estrupá tua filha... você é funcionária pública como a gente...” Reconheci o canalha. Foi amigo dos meus primos quando menino. Funcionária pública eu era, mas como professora não passava meus dias torturando pirralhos, quer dizer...não daquele jeito. Falei algo sobre os meninos estarem vivos no dia seguinte e não lembro bem como fui embora.
Acordei pela manhã com a voz de uma mulher desesperada ao telefone. Era a mãe do moleque torturado com choques elétricos. Estava assustada. Os policiais haviam passado toda a noite no barraco dela fazendo um bocado de ameaças. Demorei algum tempo para lembrar do acontecido. Isso aí virou o maior rebu. Direitos humanos, Folha de São Paulo, corregedoria, inquérito montado no fórum, promotoria, advogados, igreja, esquema de segurança, o escambal.... E minha vida, um inferno. Havia sempre um carro de polícia atrás de mim. Numa noite, quando voltava da escola, já de saco cheio daquela droga toda, desci do carro e gritei para os caras que me seguiam que eu não tinha medo deles e que se iam matar que podiam fazer ali mesmo. Confiei na covardia deles. Não me mataram. Entrei no carro e fui aliviada para casa.
Dias depois dois policiais apareceriam na minha porta com uma máquina de escrever. É. Um deles trazia uma máquina de escrever nos braços enquanto o outro dizia que eram da corregedoria. Vieram tomar meu depoimento em casa, quanta consideração.... Disse-lhes que o daria no batalhão. Foram embora. Os meninos, escondidos numa igreja, reconheceram os cinco policiais no inquérito e dias depois desapareceram. “Queriam fumar maconha” explicava-me uma conhecida. Eu chateda argumentei que dessem um caminhão de cânhamo para os guris fumarem. Alguém lá já havia tomado choque no cu?
Nunca mais soube dos meninos. E eu nem consegui anotar a placa da viatura...Talvez se eu não tivesse passado por ali, naquela noite... talvez aqueles guris ainda estivessem por aqui, ou não, sei lá. O Brasil é um país muito chato de se viver se você pensa, não tem dinheiro e tem medo.
Cris- fim da década de 80Clique aqui para ler entrevista com o autor da charge acima, Carlos Latuf - censurada pelo governo Sérgio Cabral no Rio.
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