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A PORTA

A porta travava e a voz repetia: Deixem seus objetos metálicos na caixa ao lado, por favor. Objetos metálicos? A chave do carro, um cortador de unha, um saca-rolhas... Droga, o que aquele saca-rolhas estava fazendo ali? O guarda aproximou-se da porta e enfiou os olhos dentro de sua bolsa. Podia ver-lhe a cara de enxerido a pensar sabe-se lá o que quando tirou o saca-rolhas. Ela lhe retribuiu em silêncio com o seu expressivo olhar de cuide de sua vida seu babaca. Outra vez a porta: Deixe a porra de seus objetos... Suspiros, alguns resmungos, o olhar do guarda, de outras, de todas as pessoas que estavam naquele maldito banco. O que é que estavam olhando, acaso tinham elas todas as portas do mundo abertas? Sorrisos metálicos...deixem os seus sorrisos metálicos na caixa ao lado...Havia uma pinça, lembrou-se. Uma pinça perdida naquela bolsa-buraco-negro.

Uma pinça, mas onde? Suava. Não mais apenas o olhar do guarda, já o de todos. Sentia a blusa amarela colada ao peito, o suor. Sabiam da desorganização da sua bolsa e logo perceberiam toda sua vida fora de lugar. Uma pinça, mas onde? Tentou deixar a bolsa inteira no buraco, mas o guarda a impediu. As mãos suadas deixaram escapar as moedas encontradas num canto da bolsa-buraco-negro que escorregaram no chão e tilintaram sua agonia. Mas onde estava a pinça , a pinça messiânica que a salvaria daquela arena de leões? Oh, Deus por que me abandonaste? Outra moeda. Sua mão dentro da bolsa, seu braço dentro da bolsa, todo seu corpo dentro da bolsa, as pessoas todas dentro da sua bolsa e nenhuma pinça. Ninguém dizia nada. Recolheu tudo que havia deixado na caixinha, deu de costas e fugiu dali. Noutros tempos faria um discurso sobre a institucionalização do constrangimento, exigiria reparos, acharia a pinça, entraria exasperada, discursaria novamente até ser atendida e iria embora aliviada. Não conseguia mais. Sabia que não haveria mais alívio. E talvez fosse besteira entrar ali. Pressentia que não lhe dariam o empréstimo. E isso ia fazê-la chorar na mesa do gerente que a olharia penalizado e diria que infelizmente... Chega! Pouparia o constrangimento seu e do outro.

No carro o flanelinha a viu chorar e nem por isso deixou de esperar a moeda que ele já sabia, não viria. Apenas ficou lá esperando como vício do ofício de esperar moedas. Enfim ela acelerou o carro e levou consigo aquele olhar de “Ei, cadê a minha moeda, sua chorona?” e na garganta a voz cortada de “Vá à merda!”

Dentro dela as coisas tentavam se organizar. Fazer o que sem dinheiro? Já haviam cortado o telefone. Os envelopinhos de cobrança não cessavam de chegar, não os abria mais, apenas os escondia no fundo da gaveta da escrivaninha junto com sua angústia. Outro dia resolveria aquilo.

CRICA - 2004 foi um ano difícil pra caralho

Comentários

Anônimo disse…
Porra Cris, não sei escrever curtinho, como nestes comentários, mas teu texto emociona!
Beijos.
Lamp

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